Primeiro dia no hospital
Em poucos dias acontecem as eleições em nosso País e é desnecessário eu explicar o tamanho da discórdia que está sendo semeada nesse Brasil por causa da escolha dos novos governantes.
Não posso ser hipócrita e negar que eu tenho a minha escolha e minha postura bem definidas, apesar de estar muito consciente de que qualquer cenário que se apresente está longe de ser o melhor, ou sequer o bom.
O que eu mais tenho visto são pessoas com discursos muito prontos, num looping infinito de Copiar e Colar - literalmente - em que as pessoas só sabem dizer que precisam conscientizar as outras sobre o que é certo e o que é errado, politicamente falando, como se os valores e visão que cada um tem, baseado, talvez, nem tanto em estudo e conhecimento, mas em vivência e experiência, não valessem de nada.
Vejo jovens de 18 anos - que colam para passar nas provas, que ficam felizes com uma nota cinco, que ainda não sabem o que é madrugar todos dias, enfrentar o transporte público, um trânsito desgraçado, trabalhar o dia todo pra chegar no final do mês e não conseguir pagar todas as contas- mandando outras pessoas estudarem história. Como se aquilo que a gente escutasse na escola, nas aulas que visam unicamente a prova do vestibular, fosse o suficiente para compreender toda a história do mundo.
Eu vejo gente dizendo que tem a missão de ajudar as pessoas que votam no "fulano" a tomarem consciência sei lá do que, baseado no monte de notícia deturpada, manipulada, que atendem a muitos interesses políticos e econômicos, mal apurada e inventada.
Olha. Eu sou jornalista e eu sempre desconfio de tudo que leio nas grandes mídias. Que dirá nas pequenas. Fica ai uma dica.
Ódio e ofensa gratuitos.
Em 26 de setembro, eu precisei ir até o hospital público da minha cidade junto com minha vó que precisou ser internada para fazer um exame do coração. Com o encaminhamento do médico, demos entrada no pronto atendimento. Ás 8h30 começou um dia muito longo e muito difícil. Ficamos até às 15h na recepção, aguardando a internação. Em 30 minutos, fizeram os exames necessários. Depois disso foi uma espera infinita por um leito.
A recepção do pronto socorro foi lotando aos poucos. Idosos na maioria, com seus acompanhantes aflitos. Muitos rostos pálidos, muita respiração ofegante, sangue, rostos contorcidos de dor.
A tensão é tanta que é quase possível pega-la com os dedos. É perceptível que todos estão se controlando ao máximo para não explodir de nervoso e impaciência. Minha vó esperou 6h pela internação porque não tinha leito. Gente demais para espaço de menos.
Enquanto a gente esperava, eu ouvia gritos desesperados do lado de dentro. Uma mulher urrava e chorava.
Será que ela está com muita dor?
Será que ela está surtando?
Será que morreu a pessoa que ela está acompanhando?
Enquanto a gente esperava, eu vi outra mulher perdendo totalmente a paciência na recepção porque queria notícias sobre o tio que ela tinha certeza que estava em observação. A recepcionista não dava informação nenhuma. Quando ela tentou passar pra dentro, foi barrada pelo segurança. Ela saiu furiosa dali para voltar depois decidida a obter notícia e ver o tio. Em meio a essa cena, eu entrei com minha vó para fazer um eletrocardiograma. Quando acabou, minha vó se adiantou para a recepção e eu não consegui passar, porque enquanto o segurança barrava a "sobrinha" de entrar, me barrava de sair.
Ela era uma mulher morena, baixinha, gordinha, com uma calça de moletom e uma camiseta surrada, cabelo curtinho e boné. Era um tipo. Mas que tinha o direito de saber notícias do tio. Diante dos gritos dela, o segurança estava a ponto de ceder que ela entrasse, mas a recepcionista veio correndo até ele.
A sobrinha estava pra lá do vidro, falando que ia "querer ver se o tio dela morresse sozinho ali".
Bem diante dos meus olhos, vi a recepcionista puxando o segurança pra perto, com os olhos arregalado e cochichando:
"Ela não pode entrar. O paciente veio a óbito".
Foi uma das piores sensações da minha vida. Senti vontade de chorar. Senti minhas pernas balançarem. Senti vontade de berrar que eles precisavam contar a verdade pra ela.
O segurança, uma pessoa com uma sensibilidade extra, teve presença de espírito e conseguiu convencer a mulher que ela precisava procurar o Danilo lá num sei onde. A sobrinha saiu esbravejando atrás do Danilo.
O meu peito estava apertado com aquilo. Minha ansiedade, que já estava em mil, subiu pra dois mil.
Voltei pra recepção e não consegui ficar sentada. Andava de um lado pro outro sem parar, perto do balcão. Observei a recepcionista pegar o telefone e perguntar se aquele registro era mesmo do senhor fulano, nascido em 9 de outubro de 1967. Meu Deus. Ele era jovem. O aniversário dele estaria próximo.
Ela chamou o segurança e mostrou a tela do computador. Eu entendi que ele já havia morrido há dois dias, mas não conseguiram contato com a família. Era quase um indigente. Era o tio.
A mulher do senhor Miguel, que eu imagino que deva ser um senhor forte e muito amável, como todo Miguel que eu conheço, começou a ficar muito aflita também. Ele tem insuficiência cardíaca grave. Teve 4 Avc's, um infarto, e tinha perdido 70% das funções do coração. O senhor Miguel tem 79 anos. Um guerreiro.
Ele foi tomar banho de manhã e se sentiu mal. A esposa correu com ele pro hospital e deu entrada direta na emergência. E ela não conseguia mais ter notícias. Ninguém sabia dizer onde ele estava ou como estava. Ela se sentia muito aflita.
Eu também fiquei aflita. Se minha vó sumisse naquele hospital, duas coisas poderiam acontecer comigo:
Ou eu iria, finalmente, ter um ataque de pânico e acabaria sendo internada.
Ou eu iria dar o maior escândalo da minha vida.
Resolvi sair para tomar um pouco de ar. Um rapaz jovem, simpático, com a roupa suja de quem trabalha com obras, estava jogado no chão, com o rosto contorcido de dor e a mão esquerda paralisada.
"O que aconteceu com você?"
"Tomei uma picada de escorpião"
Nossa.
"Você conseguiu pegar o bicho?"
"Não. Ele some muito rápido"
"Sua mão está assim por causa da picada?"
"Sim".
"Mas já te deram remédio?"
"Não. Só tiraram sangue".
Esse moço pode morrer por falta de medicação. Ele está com veneno no corpo. Morrendo de dor. Com a mão paralisada.
"A coisa que eu mais tinha medo na vida, era levar uma picada de escorpião".
Quando você está no hospital, não tem pra onde ir. Não existe lugar pra você tomar ar. Não existe verde pra você olhar.
Verde acalma. Mas o único verde do hospital são os uniformes dos enfermeiros. Eu deveria ter levado um vaso de planta.
Volto pra ver minha avó. Ela também estava de verde. Cansadíssima.
A esposa do senhor Miguel estava começando a perder o controle. Algumas companheiras de situação incentivaram-na a botar pressão e ir atrás de notícias. A esposa se levantou decidida, colocou a bolsa com força na cadeira, respirou fundo e marchou em direção ao lado de dentro.
A sobrinha volta. Com a mãe. Determinada.
"Me mandaram procurar a Renata".
"Que Renata?"
"A Renata que fica aqui".
"A Renata fulana?"
"Não".
"A Renata ciclana?"
"Sim"
"Ah, a assistente social".
Eu não sei descrever o meu sentimento. Como você se sente ao olhar pra uma pessoa que está prestes a receber uma notícia muito triste? De repente eu me senti mal, como se estivesse escondendo daquela mulher algo muito importante. Ao mesmo tempo, me senti invadindo um espaço que não era meu. Eu sabia da morte do tio dela. Ela não. E eu nem sei o nome dela. Mas agora, a assistente social iria contar. Senhor. Ajude.
Passa um tempo.
O rapaz do escorpião volta da medicação e se joga no chão. Dor e mais dor. Mas agora esta medicado. Depois disso, não o vejo mais.
Viro pro lado. A sobrinha com a mãe. Ofegantes. Atestado de óbito na mão.
"Disseram que temos que ir reconhecer o corpo"
Eu achei que quando ela soubessem a verdade, eu sentiria alivio, mas tudo que senti foi um nó no estômago. Elas não conseguem decidir quem vai. A sobrinha sabe que terá que ser ela... mas resiste. A mãe não cogita ir. Por fim, a sobrinha vai. Não as vejo mais.
Com aquele pesar, vejo a esposa do senhor Miguel voltando.... Fez exames e está aguardando resultados, em observação na emergência. Sinto um certo reconforto. Pelo menos ela teve noticias e ele estava vivo. Não a vi mais. Tão pouco, conheci o senhor Miguel.
Horas e horas de espera num ambiente de ansiedade e preocupação, e certa revolta. Quando eu preciso pedir uma informação na recepção, a recepcionista mal olha nos meus olhos. Enquanto eu falo, ela fala por cima, com outras pessoas. Sabe. É humilhante isso. Você se sente um zé ninguém. Desisti. Só nos restava esperar pela internação.
A recepção vai ficando lotada e não há cadeiras suficiente para todos. Muitos em pé, muitos no chão. Onde você encosta, tem alguém do seu lado que prontamente começa a desabafar sobre o próprio estado de saúde. Se eu não estivesse numa situação de tensão, eu até sentiria prazer em ouvir as pessoas, cada um com sua história, cada um com seus problemas, doenças, preocupação com o trabalho, com os acompanhantes, com os filhos. Após me sentir um zero na recepção, conversar com aquelas pessoas me confirmou algo que eu sempre tive comigo e que eu aprendi a valorizar na minha profissão: cada pessoa importa, cada vida importa, cada história importa.
Depois de longas 6 horas de espera, finalmente chamam minha vó para internar. No corredor mesmo. Assim que entramos, vi, sozinha, no meio do corredor, a senhora que estava gritando, amarrada na maca. Ela ficou ali, gritando, por horas.
Os corredores estavam cheios de leitos com pessoas em todos os estados. Uns melhores, uns piores, uns sangrando. Todos vestindo aquelas camisolinhas verdes de hospital, algumas pessoas praticamente nuas. Você não pode ficar reparando muito porque sem querer, iria se deparar com a bunda de alguém e outras partes mais. Enquanto isso, médicos e enfermeiros correndo de um lado para outro.
Em pouco tempo, conseguimos um quarto. Fizemos novas amigas. Insuficiência cardíaca, insuficiência renal, investigando a razão de estar perdendo a visão e sentindo dor no fundo do olho, outra com dores estomacais não especificadas (no dia seguinte ela recebeu a notícia do tumor maligno), vão fazer parte na nossa vizinhança nos próximos dias. Acompanhantes cansados, tentando se controlar. Enfermeiros amáveis, outros nem tanto. Médicos.
O cansaço é visível no rosto de todos. Nos encaramos, sorrimos uns para os outros, olhares de solidariedade são trocados. Começamos a ouvir as histórias da razão de cada uma estar ali. E outras história começam a vir.
Uma senhora muito amável me mostra a foto do neto dela que morreu aos dez anos. Segundo ela, lombriga, desejo de comer amora.
Não era época de amora. A lombriga atacou, começaram as convulsões, ele morreu na frente do irmão mais novo de seis anos. Doze anos após o ocorrido, o menino está estudando para ser socorrista, por nunca ter se conformado com o fato de ter visto o irmão morrendo e não poder fazer nada.
Nos ajudamos, na medida do possível. Ajudamos uma a deitar, buscamos água para outra, chamamos a enfermeira para outra, acompanhamos até o banheiro, dividimos comida.
Na nossa frente, uma senhora precisa trocar a fralda e tudo é feito ali, no meio do quarto, na frente de todos.
Eu estava um caco, cansada e com a ansiedade explodindo. "Senhor Jesus, tem piedade de mim".
Vou passear um pouco e vou reparando em todas as pessoas. O hospital deve ser um dos piores lugares para estar. Penso que é pior que velório ou cemitério. Nestes últimos, há a tristeza, mas a situação já está consumada. No hospital não. Existe a dúvida, o medo, a expectativa e a ansiedade. Existe muita dor.
O hospital nos coloca diante de uma realidade implacável que nós não conseguimos entender. A realidade da finitude, de que não somos donos de nós mesmos, que nosso corpo se limita facilmente e de repente. Nos deparamos com o sofrimento e a morte. Somos forçadamente convidados a pensar sobre a vida e a pensar sobre a morte, a pensar sobre Deus. Sobre o céu e o inferno.
Precisamos nos superar. Ter uma força que não temos, ter coragem que não temos, não ter o nojo e o receio que temos.
Hoje em dia está na moda berrar "Eu sou livre para fazer o que eu quiser, porque meu corpo, minhas regras". Passe um tempo no hospital e você perceberá como você está enganado. Seu corpo não é seu e as regras não são suas. Uma hora, ele falha, e você não tem alternativas a não ser se colocar na mão de outros. E eles vão te dizer o que é necessário fazer ou não. Se você pode sair do hospital ou não. Se você pode comer ou não.
Andando pelo hospital , começo a olhar pras pessoas. Talvez aquele senhor vote no Bolsonaro. Talvez aquela jovem vote no Haddad. Aquela senhora talvez vote no Geraldo. Aquele rapaz no Ciro. Será que aquela enfermeira pensa em votar na Marina?
Sim, deve ser. Mas ninguém ali grita que as pessoas precisam estudar história, ninguém usa camiseta #EleNão, ninguém fala "é melhor Jair se acostumando". Ninguém defende o candidato que vai votar.
O que todo mundo quer ali é eleger a vida digna. É eleger um hospital onde as pessoas não precisem ficar horas sem atendimento, esperando leito. Onde ninguém precise ficar no corredor. Onde ninguém tenha que passar pela humilhação de ser trocada na frente de muitos desconhecidos. As pessoas querem eleger remédios, aparelhos de exames, diagnósticos corretos, tratamentos eficazes. Agilidade. Explicação, atenção. As pessoas querem eleger a certeza de que quando a saúde faltar, terão um lugar para correr imediatamente com a esperança de que serão bem atendidas e tratadas. Querem eleger leitos confortáveis para o corpo doente.
No hospital você percebe que todos são iguais. Não tem mais ignorante, não tem comunista, nem fascista. Não tem bandido, não tem vitima, não tem negro, branco. No hospital temos nós. Nós que estamos doentes. Nós que estamos aflitos, nós que estamos esperando, nós que temos medo, nós que somos frágeis, nós que vamos morrer, nós que, apesar de morrermos, queremos poder viver bem o que temos que viver. Nós que queremos cuidado e atenção. Nós que precisamos nos ajudar.
Nós que queremos ser amados.
Sabe o que é amor? Amor é você passar horas e mais horas numa cadeira dura acompanhando um doente no hospital. Amor é você acudir alguém que está vomitando. Ajudar alguém a se trocar. Amor é ter paciência de escutar quem precisa falar. Amor é precisar trabalhar, estar cansado, com fome, mas superar tudo isso para ajudar alguém. E aguentar firme. Amor é você se deixar de lado para ajudar quem está do seu lado, um desconhecido que talvez vote no Haddad, talvez no Bolsonaro. Talvez seja um ladrão, talvez tenha cometido muitos delitos e pecados na vida. Mas quando você para e olha nos olhos dessas pessoas, você vê a dor, o sofrimento, o medo e o desejo de viver. E não importa o que aquela pessoa é ou fez. Você vai simplesmente ajudá-la porque ela merece ser tratada com dignidade. Ser tratada com amor. Porque, em sua essência humana, ela não é diferente de você.
Se você puder, antes de compartilhar notícia falsa na internet, antes de escrever textão no Facebook, antes de ofender alguém, antes de berrar sua verdade, vá a um hospital. Fique lá um dia. Converse com as pessoas. Pergunte suas histórias, saiba porque estão ali. Tente confortá-las. Se você achar que é necessário, no final, pergunte em quem elas votariam.... e o por quê. Se você ainda achar que é necessário conscientizar alguém pelo voto escolhido, bom, vá em frente.
Eu não sou uma pessoa perfeita. Muito longe disso. E apesar de estar passando dias muito sofridos com minha vó no hospital, estou tendo uma baita lição para a minha vida.
Não está fácil, mas percebo que tudo que Deus faz concorre para nosso bem.
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