Caso do Vestido

 Faz muito tempo que eu não apareço por aqui. Há momentos em que sinto tanta saudade desse blog. 

Hoje, vou me aproveitar deste espaço para postar um exercício de escrita criativa que faz parte de um curso que estou fazendo... A proposta era passar para prosa um poema de Carlos Drummond de Andrade, chamado "O Caso do Vestido". 


Quem quiser ouvir e ler o poema, pode clicar aqui.


Em seguida, fica minha adaptação para a prosa: 


Caso do Vestido

- Mãe, bebe, mãe, você precisa...

- Não, não adianta...

- Mãe, por favor, o doutor disse que isso ia te ajudar.

- Ele tá vindo.

- Se você não tomar, ele vai vir, vou ter que chamar.

- Ele já tá aqui, já tá, tá no pátio.

- Ele quem, mãe?

Minha mãe olhava para além da porta do quarto, os olhos desfocados, o rosto franzido de dor. Ela falava com dificuldade, mas, de repente, seus olhos se voltaram para mim com um brilho lúcido que eu quase já não via.

- O vestido.

- Que vestido, mãe?

- O vestido vermelho.

- Ah... Mãe, toma aqui o remédio, toma, eu te ajudo.

- Você vai tirar o vestido de lá?

- Isso não importa...

O vestido vermelho, velho e sujo, pendurado num prego, na parede do pátio no fundo da nossa casa. Minha mãe nunca me deixou tirar ele dali, nem me explicou o que ele significava. Ficamos uns minutos em silêncio.

- O vestido era de uma mulher que passou por aqui, quando você era um bebê.

- Do que você tá falando, mãe? Olha, vamos, o remédio.

Ela afastou minha mão.

- Vou te contar a história do vestido.

Fiquei confusa. Por um lado, há anos queria saber o porquê daquele vestido ficar pendurado na parede, por outro, naquele momento, nada mais parecia ter importância. Além do mais, eu não sabia se minha mãe estava delirando outra vez.  

- Esse vestido era de uma mulher que apareceu aqui no bairro quando você era pequena. Ela ficava passando pela rua, ca’quele vestido vermelho – minha mãe falava baixo e com certa dificuldade – Ela já morreu.

- Mãe, você precisa descansar. Toma o remédio, vai passar a dor e você vai poder dormir.

- Seu pai ficou obcecado por ela.

- O quê?

Tomada pelo choque, esqueci o remédio e a doença.

- Ele está vindo.

- Ele quem, mãe?!

- Seu pai... ficou transtornado de paixão por aquela mulher. Ele se afastou da gente, não conversava, começou a beber demais, me bateu, ficou violento.

Senti a garganta queimar, o olho encher de água.

- Mãe, deixa isso para lá, isso já faz tempo, o pai já...

- Seu pai saiu de casa, foi atrás dela, mas ela não quis saber dele. Um dia, ele me agarrou, com um olhar do demônio, disse que a culpa era minha, que era tudo culpa minha...

Fiquei em silêncio encarando minha mãe. Não queria ouvir, eu não precisava saber, mas ela precisava falar.

- Eu fui atrás daquele diabo de cabelo comprido e pedi para ela... – As lágrimas começaram a escorrer pelo rosto cansado da minha mãe. De repente, ela arregalou os olhos e mirou para além da porta – Ele está vindo, ouço os passos no pé da escada...

Eu não discordei. Finalmente, eu entendi. Aguardei. Ela ofegou e voltou a falar, de novo, olhando pra mim.

- Me perdoa filha, me perdoa...

- Mãe, não..

- Eu tinha medo que ele fizesse alguma besteira, que te machucasse. Eu pedi para aquela mulher que fizesse a vontade do seu pai... – ela segurou no meu braço. Minha garganta ardia.

- Tá tudo bem, mãe...

- A desgraçada riu na minha cara. Disse que não queria saber do seu pai, mas que iria ter o prazer de fazer a minha vontade...

Eu senti vontade de vomitar.

- Fiquei doente, pensei em me matar, mas tinha você, que era a única razão do meu viver.

Cedi. As lágrimas rolaram.

- Seu pai sumiu e, por você, eu fiz tudo que fiz. Cuidei da gente, trabalhei... Você me perdoa?

- Tá tudo bem, mãe, tá tudo bem. Chega. Descansa agora.

- Um dia, a mulher apareceu aqui na porta, você tava na escola. Ela tava magra, suja, desgrenhada. Disse que com o tempo começou a amar o seu pai, até que um dia, ele foi embora atrás de uma moça mais nova.

Senti um cheiro azedo no ar, minha boca encheu de saliva.

- Mas a dona do vestido não tinha filho, não tinha razão pra viver, tentou se matar, mas a vida fez justiça. Ela pagou, não morreu, ficou vivendo meio morta, comendo o pão que o diabo amassou. Me entregou aquela vestido, me pedindo perdão – se minha mãe não estivesse doente, teria dado um sorriso debochado, como estava, soltou só um soluço – disse que tava arrependida pelo mal que tinha me feito. Eu peguei o vestido e ela foi embora. Então, preguei o vestido na parede. Depois de uns dias, seu pai voltou como se nunca tivesse ido. Nunca falamos sobre o que tinha acontecido.

Minha mãe voltou a olhar para mim, já não chorava, tinha uma expressão serena, nos olhos o último lampejo de lucidez. Segurei suas mãos. O olhar dela voltou a desfocar.

- Ele chegou, seu pai chegou.

E então, ela deu o último suspiro e foi ao encontro do meu pai. Juntos, foram para um lugar onde não deveria haver nenhuma mulher de vestido vermelho. E eu, aos 17 anos, fiquei sozinha, mas decidi, naquele momento, que nenhum homem mais entraria na minha vida.




Comentários

Postagens mais visitadas