Apresentando: minha Monstrinha
Ela nasceu junto comigo.
Tinha uma missão: me proteger. Identificar situações de
perigo e me deixar pronta pra fuga ou pro ataque. Ela me daria as substâncias
necessárias para ser mais veloz, mais forte, com os sentidos mais aguçados, a
intuição mais afiada, mais desperta, focada e concentrada. Quase um anjo da
guarda.
Só que ela se tornou precavida demais... até um pouco
paranoica. Com pouca idade que tínhamos, ela começou a exagerar com o lance de
“instinto de sobrevivência”, vendo perigo onde não tinha.
Os anos foram passando e eu comecei a sair mais pro mundo...
que nem era tão grande. Ambientes normais de um ser humano, um desafio aqui,
outro ali, e ela foi ficando cada vez mais amedronta. Sabe, até entendo. Com
aqueles noticiários horríveis, com tanto estímulo, barulhos e luzes, tanta
mutação, tanta incerteza... ela só queria me blindar.
Por um longo tempo, achei que era amor manifestado em
excesso de cuidado. Eu via que ninguém mais tinha uma protetora como eu e quase
me achava privilegiada por isso. Ela tinha a seguinte filosofia de vida: “espere
o pior, porque se ele acontecer, você já está preparada. Se ele não acontecer,
será uma feliz surpresa”. Ela só queria antever os sofrimentos pra me
poupar deles.
Ela foi virando uma especialista em previsões catastróficas.
Muito estudo, muita leitura, muito preparo para me oferecer o melhor. Quando
realmente uma situação mais séria se apresentava... vocês precisavam ver a
competência dela. É que estamos diante dos perigos modernos, porque se fosse
algo como um perigo dos ancestrais, na selva, ela era capaz de me dar o
suficiente para lutar com um leão, tamanho estado de alerta, corpo retesado
para a luta, instintos estratégicos para a fuga.
Mas com o tempo, eu comecei a estranhar o comportamento
dela, questionar esse excesso de proteção. Ela não gostou. Se sentiu ofendida,
magoada e com ciúmes também. Comecei a buscar pessoas que pudessem me ajudar a
me livrar dela e ela ficou muito brava. Ela começou a treinar, ficar bem forte e partir pra agressão.
Antes, ela me convencia pela argumentação, liberava as
substâncias acima do que eu precisava, deixava meu corpo exausto, mas tudo bem.
No entanto, quando comecei a contra-argumentar, bater de frente, não aceitar
muito mais daquilo, ela ficou feroz.
Às vezes, ela pula no meu peito e tenta me dar uma chave de
braço, me fazendo sufocar. Outras vezes, ela consegue chegar no meu coração e
fazer ele disparar e martelar com força. Tem vezes, que ela pinga gotas de
gasolina no meu sangue e põe fogo... vejam bem, não é desse jeito que vocês tão
pensando não... é um fogo que queima os órgãos e faz com que tudo, da cabeça
aos pés, vá derretendo.
Ela sabe jogar com a temperatura do corpo. Faz uma bagunça
que supera o aquecimento global do planeta. Um gelo por fora, um calor por
dentro, uma tremedeira sem fim. Tem outra tática que ela usa também: prensar
minha mandíbula. Ela gosta muito de fazer isso de noite e é tão danada que
depois, quando sinto uma pressão horrível acima da cabeça por conta dessa tensão
na ATM, ela tenta me dizer que é uma veia entupida... Às vezes eu quase caio
nessa armadilha... quase.
Iiiihhh, a lista segue: mexe no meu intestino e na minha
bexiga, trava meu braço e meu pescoço, dá socos na minha cervical, corta minha
respiração e me faz sentir tontura e por ai vai.
Já falei pra ela tentar trabalho em Hollywood. Ela teria
possibilidades: roteirista, especialmente pra filmes apocalípticos, ou então
atriz, mas pique Jack Chan. Filme de luta mesmo, artes marciais. Hum... numa
dessa, quem sabe um filme da Marvel...como vilã...
Se ela fosse por esses caminhos, quem sabe me deixasse em
paz... a minha Monstrinha...
“Monstros são para gente encarar”, me disseram.
O problema mesmo é que...Ela é minha. Ela cresceu comigo,
ela sempre esteve ali tentando me proteger. Não posso simplesmente jogar uma
vida de companheirismo e cuidado pela janela. A presença dela é parte de quem
eu sou; me pergunto quem eu seria sem ela e parece que não me reconheceria.
Talvez, no fundo, eu não queira deixá-la ir.
Só que essa relação se tornou tóxica, abusiva e eu precisava
fazer algo por nós. Numa atitude desesperada, quis abandoná-la num abrigo e
quando nos avaliaram, acharam nossa relação meio confusa. Um olhar atento me
alertou que o problema pode não ser, isoladamente, da Monstrinha. Talvez ela
esteja recebendo excesso de uns hormônios produzido pelas glândulas
suprarrenais. Me mandaram investigar.
Coitada... estou com um pouco de pena da Monstrinha. Eu
tenho mesmo é que cuidar dela e não chutar pra qualquer lugar. Ela está com
tanto medo... ela fica dizendo, toda hora, que tem algo horrível dentro do
corpo dela, dentro do nosso corpo e que... bom...
Olhem só... esses dias, a gente viu um vídeo do inverno em
Nova York e eu comentei sobre o Natal. Sabem o que ela disse?
“Será que
viveremos um Natal de novo?”
Eu falei pra ela sossegar, que nem adianta começar com essas
ideias porque não há nada que possamos fazer, se esse for o caso.
Mas ela está assustada. Bom, eu também estou um pouco
preocupada, pra falar a verdade.
Essas noites, quando a Monstrinha fica com muito medo, ela
me agarra pelo pescoço e me aperta com força, sufocando meu peito. Minha primeira reação é tentar
dar um nocaute nela pra ela me largar. Mas então eu lembro que não é por mal, é
só medo. Ela está com medo. Então eu tento acolher o medo dela, deixo ela me
apertar até ela sentir meu coração batendo com força e pulsando vida pra nós
duas. Ai ela fica melhor e afrouxa um pouco os braços e a gente dorme. Não é
muito confortável, mas ainda é melhor do que quando a gente briga e os gritos
que eu dou acordam a casa inteira...
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