Amoris laetitia - encontrar a vocação #2
Continuação do meu comentário sobre Amoris Laetitia (A Alegria do Amor) - Sobre o Amor na Família, a 3ª Exortação Apostólica do Papa Francisco publicada em 8 de abril de 2016. Ela foi escrita tendo como base o Sínodo dos Bispos sobre a Família realizado entre 2014 e 2015.
O desafio de ser família
Ainda no começo da exortação, o Papa Francisco faz questão de pontuar com enfase que a união matrimonial representa a união entre Cristo e a Igreja onde um dá a vida pelo outro e, que toda a família tem diante de si, como um modelo, a Família de Nazaré, que não foi uma família que buscou o seu próprio interesse, mas em tudo fez a vontade de Deus. José aceitou ser pai de um filho que não era biologicamente seu e tomou por esposa uma mulher gravida “de outro”. A Virgem Maria se anulou totalmente ao aceitar entregar o próprio filho pela redenção dos homens e Cristo… bem, nem precisa dizer… mas vale recordar que, a parte do que Ele fez pela humanidade, enquanto homem, em tudo foi obediente aos seus pais.
“Como Maria, [as famílias] são exortadas a viver, com coragem e serenidade, os desafios familiares tristes e entusiasmantes, e a guardar e meditar no coração as maravilhas de Deus (cf. Lc 2, 19.51). No tesouro do coração de Maria, estão também todos os acontecimentos de cada uma das nossas famílias, que Ela guarda solicitamente”.
Aliás, o oposto da Família de Nazaré é o que vive o mundo hoje, ameaçando a família todo o tempo com um individualismo exacerbado que incute em nós a ideia de que para ser feliz temos que nos ‘construir’ com nossos próprios desejos que para nós, possuem um caráter absoluto. Durante todo o texto, Papa Francis vai nos mostrando como esse individualismo e egoísmo destroem a família e, consequentemente, destrói a pessoa, os relacionamentos interpessoais e toda sociedade.
O Papa também reconhece que o ritmo de vida que nos é imposto pela sociedade moderna tornam ainda mais difícil a comunhão familiar: “As tensões causadas por uma cultura individualista exagerada da posse e fruição geram no seio das famílias dinâmicas de impaciência e agressividade. Gostaria de acrescentar o ritmo da vida atual, o stress, a organização social e laboral, porque são factores culturais que colocam em risco a possibilidade de opções permanentes.” Como opção permanente, por exemplo, a escolha de um casamento que seja para a vida inteira, ou mesmo, ter filhos, que são, definitivamente, para a vida inteira.
“No fundo, hoje é fácil confundir a liberdade genuína com a ideia de que cada um julga como lhe parece, como se, para além dos indivíduos, não houvesse verdades, valores, princípios que nos guiam, como se tudo fosse igual e tudo se devesse permitir. Neste contexto, o ideal matrimonial com um compromisso de exclusividade e estabilidade acaba por ser destruído pelas conveniências contingentes ou pelos caprichos da sensibilidade. Teme-se a solidão, deseja-se um espaço de proteção e fidelidade mas, ao mesmo tempo, cresce o medo de ficar encurralado numa relação que possa adiar a satisfação das aspirações pessoais.” A mim, parece o retrato do mundo que vivemos.
Neste sentido, é necessário ajudar as famílias cristãs a irem contra a corrente e talvez essa seja a grande novidade da Exortação. Segundo Francisco “Durante muito tempo pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos 30 dificuldade em apresentar o matrimônio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira”. Graças a Deus, alguns frutos do Concílio Vaticano II tem redescoberto isso e já tem ajudado muitas famílias a viverem o matrimônio como uma graça, um caminho de conversão, alegres por ver que no seio familiar se conhece o amor de Deus e assim se conhece o próprio Deus.
As palavras do Papa se dirigem também a nós, jovens que estamos, de uma maneira ainda mais profunda do que as gerações de nossos pais, enraizados nessa “cultura do descartável”. O Papa compara as relações interpessoais atuais com as relações virtuais e de consumo em que se pode conectar, desconectar e até mesmo bloquear, sem que nasça uma relação afetiva profunda, um compromisso de fidelidade que se transforma num amor continuo e duradouro. Da minha parte, ouso dizer que estamos acostumado as coisas essenciais da vida que duram pouco… Smartphones, que não vivemos sem, duram apenas dois anos… que ninguém aqui seja hipócrita de dizer que não criamos uma relação afetiva com nosso celulares… quando meu primeiro Smartphone começou a dar problema e tive que trocá-lo, tive uma dificuldade afetiva em descartá-lo… além do que é uma coisa muito pessoal, quero dizer, eu tinha o mesmo modelo de celular que o meu pai, no entanto, não sabia mexer no celular dele com a mesma habilidade que sabia mexer no meu. Ao mesmo tempo, quando nos livramos de um celular que começa a apresentar defeito, no começo podemos nos sentir um pouco magoados, mas assim que chega o novo, funcionando perfeitamente, mais rápido, sem arranhões causados pelas quedas do antigo, logo já esquecemos nosso “ex” e rapidamente temos uma nova relação de amor com aquela maquininha… Como não transpor isso para as relações pessoais? Quando começamos a ver o defeito no outro, quando aparecem os arranhões e marcas da convivência, começamos a nos enfadar e assim que aparece alguém “novo”, sem marcas, com algo novo a oferecer, nos parece muito simples trocar, como fazemos com objetos…
Que dizer então dessas redes sociais? Onde é muito fácil falar coisas que jamais falaríamos pessoalmente e que se não gostamos de algo é só ir la e desfazer a amizade sem precisar dialogar ou se desculpar e nunca se reconciliar?
Como ajudar os jovens, que se sentem objetos descartados, a não descartarem os outros?
“«Correndo o risco de simplificar, poderemos dizer que vivemos numa cultura que impele os jovens a não formarem uma família, porque privam-nos de possibilidades para o futuro. Mas esta mesma cultura apresenta a outros tantas opções que também eles são dissuadidos de formar uma família » Nalguns países, muitos jovens «são frequentemente levados a adiar o matrimônio por problemas de tipo econômico, laboral ou de estudo. Às vezes também por outros motivos, tais como a influência das ideologias que desvalorizam o matrimônio e a família, a experiência do fracasso de outros casais a que eles não se querem expor, o medo de algo que consideram demasiado grande e sagrado, as oportunidades sociais e os benefícios econômicos derivados da convivência, uma concepção puramente emotiva e romântica do amor, o medo de perder a liberdade e a autonomia, a rejeição de tudo o que possa ser concebido como institucional e burocrático». Precisamos de encontrar as palavras, as motivações e os testemunhos que nos ajudem a tocar as cordas mais íntimas dos jovens, onde são mais capazes de generosidade, de compromisso, de amor e até mesmo de heroísmo, para convidá-los a aceitar, com entusiasmo e coragem, o desafio de matrimônio.”
Desde o Sínodo, os Bispos já trouxeram esta questão cultural que interfere negativamente nas relações interpessoais, sobretudo a tecnologia. Reconhecem que a tecnologia é um grande bem para a sociedade, mas a maneira como ela é usada pode se tornar um grande mal. A busca pela felicidade a qualquer custo, a falta de princípios e valores abrem espaço para uma “afetividade sem limites, narcisista, instável e mutável que não ajuda os sujeitos a atingir uma maior maturidade". Os bispos também manifestaram preocupação com a difusão da pornografia, que dados científicos já mostraram que fazem um mal psicológico. A comercialização do corpo e a prostituição, situações encontradas no mal uso da internet. Eles também observaram que as crises conjugais são enfrentadas com pressa e superficialidade, sem nenhuma paciência, buscando o caminho mais fácil: a separação, sem levar em conta o perdão e a reconciliação, porque isso exige um certo sacrifício. “Deste modo os falimentos dão origem a novas relações, novos casais, novas uniões e novos casamentos, criando situações familiares complexas e problemáticas para a opção cristã”.
O Papa recorda dos perigos que a destruição da família, que atinge diretamente na taxa de natalidade, pode trazer para a sociedade, especialmente em questões econômicas. Alguns países europeus tem sofrido com a falta de mão de obra jovem, por exemplo. Não há quem repor no mercado de trabalho, não há novas ideias para seguir avançando, não há quem gire capital e alimente o Estado para que esse possa garantir a aposentadoria dos idosos.
O Papa reconhece porém, que formar uma família não é algo simples e fácil, mas sim, algo heroico que exige determinação e coragem. Fazendo uma análise, ele lista uma serie de situações que vão contra a ideia de que ter uma família é algo bom. Ele retrata por exemplo, as poucas oportunidades pros jovens de encontrar um bom trabalho que possa garantir-lhes o sustento próprio e dos dependentes. Fala das longas jornadas de trabalho “dificultadas ainda mais pelo tempo perdido no transito, o que dificulta a reunião da família”. O abandono de crianças, a exploração sexual, “a migração forçada das famílias, em consequência de situações de guerra, perseguição, pobreza, injustiça, marcada pelas vicissitudes duma viagem que, muitas vezes, põe em perigo a vida, traumatiza as pessoas e destabiliza as famílias”.
Segue falando ainda dos pais que, forçados por uma situação de pobreza, vendem os filhos, os colocam para trabalhar ou na prostituição. O medo de filhos que nasçam deficientes e até mesmo o medo de envelhecer, uma vez que os idosos são descartados na nossa sociedade. Aparece ainda questões como a violência doméstica e a dificuldade dos pais educarem, dialogarem e se fazerem presentes na vida dos filhos: “Além das situações já indicadas, muitos referiram-se à função educativa, que acaba dificultada porque, entre outras causas, os pais chegam a casa cansados e sem vontade de conversar; em muitas famílias, já não há sequer o hábito de comerem juntos, e cresce uma grande variedade de ofertas de distração, para além da dependência da televisão. Isto torna difícil a transmissão da fé de pais para filhos. Outros assinalaram que as famílias habitualmente padecem duma enorme ansiedade; parece haver mais preocupação por prevenir problemas futuros do que por compartilhar o presente”.
Todas essas questões e outras mais, causam, sobretudo nos jovens, o medo de assumir uma família, assumir compromissos e responsabilidades.
O Papa mostra, que ao contrário do que muitos julgam, ele não está alheio a essas questões, que ele sabe o que as pessoas passam no dia a dia, das dificuldades que enfrentam e que o medo vivido na hora de casar e ter filhos não é algo infundado e sem sentido, pelo contrário. Porém é necessário buscar outras opções e outros caminhos que mostrem que vale a pena se arriscar por que é justamente a família, em especial a família cristã, que é um sinal de esperança e amor num mundo que parece submerso em trevas.
Nesta primeira parte, a Exortação do Papa Francisco expõe toda a problemática que enfrentamos atualmente e que atentam contra a vida familiar.
Continua no próximo post.
Obs.: Embora eu não tenha colocado as referencias devidamente, todos os trechos em negrito e itálico foram copiados da Exortação Apostólica Amoris laetitia.
Quem quiser ler o PDF da exortação: https://w2.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia_po.pdf
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