Frutas não são apenas frutas

Dia 1

Para a menina que andava a passos lentos entre centenas de pessoas no terminal rodoviário, cansada depois de um dia de trabalho, frutas não eram apenas frutas. As frutas traziam sentimentos.
Quando ela era criança, se matava para tentar colher algumas amoras na árvore que ficava próxima da casa da melhor amiga.
Ela não gostava de laranja lima, mas toda vez que pensava na pequena fruta, lembrava da mãe espremendo a laranja na mamadeira para dar aos irmãos caçulas quando eram bebês.
Quando os irmãos eram bebês, toda a tarde, a mãe também fazia vitaminas de mamão ou abacate para eles, e claro, ela aproveitava e mesmo quando adulta, continuou fazendo as batidas, sempre lembrando das tardes felizes, em que tomava a bebida assistindo televisão.
Falando em abacate, o pai a havia ensinado a gostar de suco de abacate, com muito gelo, açúcar e limão. Ninguém mais em casa gostava, só eles. Quando não fazia suco, o pai cortava o abacate ao meio, amassava com açúcar e limão e dividia com ela.
A última vez que fez uma refeição com o avô, um dia antes dele ir pro hospital para nunca mais voltar, eles dividiram um caqui.
-Tem caqui, quer? - Perguntou a avó.
- Quero - Respondeu ela.
- Ah, eu também quero - pediu o avô.
A vó foi até a geladeira.
- Ah, mas só tem um.....
Claro que ele ia deixar a neta comer. Ao receber o caqui, ela disse, educadamente:
- Quer metade, vô? - Mas claro que ele não iria aceitar meio caqui, ainda mais pequeno como aquele. 
- Ah, eu quero.
A menina se surpreendeu, mas dividiu o caqui com o avô.
Quinze dias depois, quando estava no mercado, foi comprar caqui e os olhos encheram de lágrimas. Caqui não era só mais um cáqui. Seria sempre a última memória dela com o avô ainda lúcido.

 E havia a atemoia, que ela nunca havia comido, mas que um dia a mãe havia chegado com uma em casa, toda animada: "filha, olha o que eu comprei!".
Ela desconfiou da fruta, mas a mãe garantiu que era uma delícia.
- Como come isso aqui, mãe?
Na primeira mordida e a menina sentiu aquele afago na alma pela fruta mais deliciosa que estava comendo. Carnuda, doce, uma sobremesa feita pela natureza.
E assim, ela e a mãe começaram a dividir a atemoia. Era a fruta delas.

Com o estômago roncando de fome, sonhando com chegar em casa, ela passou por uma banca de frutas, em frente ao terminal, que exalava um perfume delicioso, doce, mas com um pouco de acidez. A fome apertou. Então os olhos pousaram nas atemoias enormes. Salivou. 

Parou na banca de frutas. Um rapaz veio atendê-la.
-Oi
- Oi- Ela respondeu sem levantar os olhos.

Começou a pegar algumas atemoias. Meu Deus.... como escolhia aquela fruta? Como saber se estaria mais madura, mais suculenta??? Que tarefa difícil. Ainda mais com o vendedor olhando para ela, esperando.... que pressão.

- Hum, moço....- Ela começou, sem olhar pra ele - essas frutas tão boas pra comer hoje?
- Hum.... não, pra hoje não....

Desapontada, ela olhou para ele. Uma barba castanha espessa, olhos pequenos e um boné. A frustração no rosto dela era nítida.

- Bom, vamos ver o que a gente consegue - o rapaz começou a apalpar as frutas.
- Vou querer duas - Ela pediu
- Olha, essas aqui da pra comer em dois dias...
- Hum..... - mais frustração.

Ele começou a apalpar todas as atemoias.

- Ah! achei uma mais madura. Essa da pra comer hoje.
- Aaaah!- Sorriu satisfeita.
- Vou embalar pra você, pra não amassar, pode ser?

Então ela olhou de verdade pra ele pela primeira vez. Sorriu agradecida.
- Claro. Obrigada.

Recebeu. Pagou e saiu feliz, ansiosa por chegar em casa.

Dia 2

Bananas. Aquele dia, ela não podia esquecer de comprar as bananas que havia prometido.
Mais uma vez, depois de um dia cansativo de muito trabalho e de muito calor, parou na banca de frutas. As bananas estavam maduras demais. Com aquele calor, não iriam durar até o dia seguinte. Depois de um bom tempo, escolheu algumas mais firmes e ergueu os olhos para procurar um atende. Assustou quando deu de cara com o rapaz da barba espessa e boné.

- Oi - ele disse sorrindo.
- Oi- Ela respondeu, mas sem sorrir. Não sabia quando tinha dado aquela intimidade que viu nos olhos dele. Outra atende veio cobrar as frutas.

Dia 3

Estava atrasadíssima para o trabalho. Se perdesse o ônibus, perderia hora feio. Ao atravessar a rua, deu de cara com o rapaz da barba espessa e boné, encostado na banca de frutas, olhando para ela, com um sorriso gentil. Ela acenou rapidamente a cabeça.
O que era aquilo agora? Será que ele achava que conhecia ela de algum lugar? Tava confundindo com outra pessoa? Só podia ser....
Ou talvez, como eles se viam todos os dias, ele achava que não eram mais estranhos um ao outro. Igual o motorista do ônibus que a gente vê todo dia e vira amigo.

Dia 4

De fones de ouvido, ela estava na plataforma, esperando o ônibus para ir trabalhar, como fazia todos os dias. Do outro lado da rua, ela viu o rapaz das frutas tirando as caixas do carro e levando até a banca. Ia e voltava, ia e voltava. O mesmo boné na cabeça. Será que o cabelo dele era feio?

Dia 5

Lotado, o ônibus parou num lugar diferente. Sendo levada pelos passageiros que mais pareciam uma manada se atropelando, ela desceu aos tropeços. Parou um segundo para se recompor. Ergueu a cabeça e o rapaz estava sentado na banca de frutas olhando para o outro lado. Ótimo, ela deveria aproveitar e sair apressada sem olhar pros lados.
Mas, sem saber por qual razão, deu passos lentos. Mas não ia olhar pra banca. Olhou. Ele continuava olhando pro outro lado. Ela diminuiu mais ainda o passo. Não olhe pra banca. Olhou. Ele virou a cabeça. O mesmo boné. A barba maior. Ele deveria fazer aquela barba. Ele sorriu. Ela assustou. Não deveria ter olhado. Sem emitir nenhum som, ele murmurou "oi". Antes que pudesse evitar, ela sorriu. Arrependida, saiu disparada. No meio do caminho, deixou cair umas moedas. Abaixou para pegar. Se levantou um segundo, parou e olhou para trás. O rapaz não estava mais ali.

Dia 6

Finalmente, sexta-feira, fim do expediente. Indo pegar o ônibus, instintivamente, olhou para as frutas. O rapaz não estava ali. De novo não estava? Que estava acontecendo?
Balançou a cabeça recriminando a si mesma. Ao olhar para frente, lá vinha ele. O mesmo boné. Será que era sempre o mesmo? Eca. A barba enorme. Vamos fazer essa barba? Camiseta preta. Ele tinha umas costas largas uns braços fortes. Você tá ficando doida? Será que ele mora num sítio onde planta as frutas que vende? Será que tem pé de atemoia na casa dele? Antes que os olhares deles se encontrassem ela virou o rosto e marchou decidida. Assim era melhor.

Dia 7

Segunda-feira. Não havia frutas em casa, teria que parar na banca para comprar uma maçã para levar ao trabalho... que pena. Ao descer do ônibus, la estava ele. O mesmo boné. Camiseta vermelha, calça jeans, bota. A barba havia sido aparada. Desde quando ela reparava no que ele vestia? Encostado na banca, encarava ela como sempre. O mesmo sorriso amável, como sempre. Ela não desviou o olhar. Sem emitir nenhum som, ele disse "oi". Será que ele tinha algum problema?
Sem esboçar nenhuma emoção, apesar do coração pular, ela atravessou a rua decidia em direção a ele. O sorriso dele se transformou em espanto.
- Bom dia- Ela disse com uma mistura de simpatia e rispidez. "Vamos parar de fingir que você não fica me encarando todo dia e eu vou parar de fingir que não ligo nenhum pouco. Não que eu ligue. Talvez eu ligue só um pouquinho".


- O que você tem de bom ai para eu comer agora de manhã?

Confuso, ele respondeu
- Bom....-Olhou para as frutas demoradamente, se recompondo. - As ameixas estão boas, você gosta?.
- Quero duas, por favor.
- Quer uma cesta?
Ah! Ela teria que escolher, claro...
- Não precisa.
Parou na frente das ameixas e começou a apalpar as frutas. O orgulho inflando por dentro. Droga, quando ia aprender a escolher frutas?
O rapaz começou a remexer nas ameixas.
- Essas duas estão boas.
- Obrigada- Ela respondeu envergonhada- Eu sou péssima em escolher frutas.
- Pra isso estou aqui- Ele respondeu bem baixinho.
- Ainda bem- Ela respondeu, sem pensar. Ele olhou para a menina, apertando os olhos. De repente ela achou as peras interessantíssimas.
- São dois reais. Achei que nunca mais fosse comprar frutas aqui- Ele disse enquanto entregava a sacola.
- Bom, hoje eu estou. - Meu Deus, cala essa boca!
- A atemoia também está madura. Não quer aproveitar?
- Ah, esta atemoia está um pouco cara hoje, vou passar.
Ele se virou para pegar o troco. Quando voltou, além do dinheiro, entregou para ela uma atemoia:
- Por conta da banca.
Supresa e sem conseguir conter o sorriso, ela agradeceu e antes que pudesse se segurar, disse:
- Ta aí um excelente incentivo para eu comprar aqui mais vezes. - MEU DEUS, CALE ESSA BOCA.
O rapaz ficou surpreso e de repente, estava da cor da ameixa que havia acabado de vender. Mas respondeu:
- Espero que sim.

Dia 8

O olhar dela varreu a banca de frutas. Nada. Fazia dias que não encontrava o cara do boné.... que será que havia acontecido? Se sentindo uma completa idiota, seguiu seu caminho, decidida a nunca mais olhar para aquela banca de frutas.

Dia 9

Cansada, sentou para esperar o ônibus. Retirou o livro da bolsa para se distrair enquanto aguardava. De repente, alguém sentou ao lado dela, mas ela não desgrudou os olhos do livro.
- O que você está lendo?
Ela se assustou.
Barba e boné a encaravam com toda a naturalidade do mundo, como se não tivesse passado dias desaparecidos.
- Um romance qualquer- Ela respondeu secamente.
- Está cansada?
- Sim - Que droga. Ele não sabia que era falta de educação interromper uma leitura?
- Está com fome?
Ela não respondeu.
- Pensei que você gostaria de uma ameixa.
- Me desculpe, mas não tenho dinheiro hoje.
- Mas é de presente.
Ela olhou para ele surpresa. Ele estendia a pequena fruta roxa pra ela, que exalava um perfume delicioso. O olhar dele era simples e amável. Como sempre. Ela relaxou um pouco, baixando a guarda.
- Obrigada- Deu um meio sorriso.

Dia 10

Dias iam e vinham. A mesma troca de olhares, o mesmo "oi" à distancia. Algumas vezes, ela entrava para comprar alguma fruta que ele escolhia. Ele sempre acertava na escolha. Passar pela banca de frutas e procurar o boné e a barba já faziam parte da rotina. Alívio quando os encontrava. Decepção quando não. Como havia sido naquele dia.
Sentou para esperar o ônibus, mexendo no celular, frustrada. Passado dois minutos, alguém sentou do lado dela. Não precisou olhar para saber. O sorriso preencheu os lábios.

- Moça, posso te fazer uma pergunta?
O sorriso deu lugar ao espanto.
- Você não precisa responder. Aliás, prefiro não ter resposta do que uma mentira.
Droga. Ela sabia que jamais deveria ter levado aquilo adiante. Sentiu um pânico por dentro. Que diabo ele ia perguntar????? Sério daquele jeito? Podia haver um clima, mas ela fez de tudo para manter uma distância segura. Deveria ter evitado mais....
Ele estendeu uma ameixa para ela.
- Depois que eu fizer a pergunta, se você pegar a ameixa, é porque aceita responder a verdade. Se você não aceitar a ameixa.... bom, eu vou embora, entendendo o recado.
Jamais ela iria pegar aquela ameixa. Não havia perguntas na relação deles. Não havia troca de informações que fosse além das frutas. Ela sentiu o pânico crescer e olhou ao longe, ansiosa pelo ônibus.
- Como você chama? - Ele perguntou
- Quê???? - Será que ela havia entendido direito?
- Como você se chama? - Perguntou, oferecendo a ameixa.
O nome? Era isso??
Ela não conseguiu segurar, gargalhou. O alívio dando lugar ao pânico. Só o nome. Quando ela se recuperou, havia mágoa no olhar dele. Porém, orgulhoso, mantinha a oferta.
Ela respirou fundo. Olhou para o horizonte, o ônibus não vinha.
Era só o nome e não era ao mesmo tempo. Era uma troca de informação. Uma troca de informação importante. Até então, ela estava dentro de casa apoiada na janela e conversava com o rapaz que estava em pé na calçada. Aceitar aquela ameixa significava que iria abrir a porta para conversar com ele na calçada, sem nenhum muro entre eles. A distância segura já não seria tão segura. E seria muito arriscado. Ela não conhecia aquele rapaz. Não sabia nada sobre ele.
Mas ela também não sabia nada sobre atemoia. Torceu o nariz a primeira vez que a mãe ofereceu. Mas experimentou. E amou.
Nada do ônibus ainda.
Ela respirou fundo de novo.
Cadê aquele ônibus?
Olhou para o rapaz que mantinha a expressão tranquila, paciente.
Ela olhou de novo o horizonte. O ônibus estava vindo. Ela tinha 60 segundos.
Olhou para ele de novo. Os olhos castanhos fixavam-se no dela, paciente.
A menina umedeceu os lábios.
Estendeu as mãos.
Pegou a ameixa.

Frutas não são apenas frutas.







Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas