O desabafo no carro



O denso calor de dezembro espremia meu corpo e cada célula epitelial ardia no contato com o sol das duas horas da tarde enquanto eu subia a rua carregando minha mochila, sentindo as primeiras gotas de suor que se formavam pelas minhas costas e tronco. O barulho das rodinhas brigando com as pedrinhas do chão de terra ficavam cada vez mais alto à medida que Felipe se aproximava trazendo minha mala. 
Quando finalmente ficamos lado a lado, olhei para ele e sorri. 
- Obrigada por trazer minha mala- agradeci.
- Não tem de quê - respondeu ele de volta sorrindo com os lábios finos.
- Foi um final de semana muito divertido. Fazia tempo que eu não dava tanta risada, sabe... estava precisando - comentei de forma aleatória. 
- É... - resmungou Felipe sem muito interesse. 

Chegamos no carro que já estava ligado. Enquanto Felipe guardava minha mala no bagageiro, eu entrei no banco atrás do motorista, minha pele imediatamente arrepiada pelo choque térmico. "Obrigada, Deus, por ter inspirado o homem a inventar o ar condicionado e torná-lo possível em todos os lugares", rezei silenciosamente. 
Felipe entrou, sentando ao meu lado. 
- Ah, que delícia aqui dentro - comentou suspirando. 

- Que pena que você não pôde ficar mais, Clarissa - disse me tia, virando ligeiramente o tronco para me olhar de relance. 
O carro já havia arrancado para o trajeto de 40 minutos que tínhamos até a rodoviária, meu tio dirigindo lentamente pela estrada de terra fazendo o carro chacoalhar pelo terreno irregular. 
- Já foi uma sorte conseguir o dia de hoje de folga no trabalho, tia - respondi, sem olhar para ela. 
Meus olhos ficavam fixos para além da janela e eu tentava me mexer o mínimo possível enquanto meu estômago começava a embrulhar. Respirando fundo e mantendo a calma, não respondi mais nada depois que ela comentou alguma coisa sobre meus primos e sei lá mais o quê. Meu foco estava todo em não vomitar, pelo menos até que a gente chegasse na estrada asfaltada. Eu queria muito abrir a janela, mas era impensável diante da poeira que subia do chão de terra.
Ao poucos, comecei a divagar por aquele feriado prolongado que havia passado com meus tios e primos num sítio no interior. Na verdade, a propriedade pertencia aos pais do Felipe, afilhado dos meus tios que aproveitaram para tirar uma mini férias antes das férias para celebrar o aniversário da minha prima que havia sido no dia anterior, domingo. 
Da minha família, só eu pude ir, assim como mais algumas pessoas que minha prima quis convidar. A casa era bastante grande e podia acolher várias pessoas com certo conforto. Quando recebi o convite, não fiquei muito animada, sobretudo porque precisaria fazer uma longa viagem de ônibus, tanto na ida quanto na volta. E para aproveitar bem, tive que pedir a segunda-feira de folga para não precisar pegar o ônibus bem no domingo do churrascão de aniversário. 
Apesar de no primeiro dia ter passado muito mal de dor de cabeça, os três dias seguintes foram surpreendentemente bons. Fazia um tempo que eu não via meus tios, que não moravam na mesma cidade que eu, embora fosse uma cidade bem próxima. Fazia também uns três anos que eu não ia naquele sítio e tinha até esquecido como era bom ali.
A casa ficava na beira de um lago pequeno, com muito verde, muitos pássaros num cenário de muita natureza e paz. Era toda decorada em estilo rústico com a copa dando bem para o lago, de forma que no café da manhã contemplávamos os primeiros raios de sol iluminando a paisagem e, pela tarde, os tons laranjas formando uma verdadeira pintura em quatro dimensões. 
Além do ambiente absolutamente benéfico para minha alma e mente, me diverti a beça com meus primos e alguns amigos deles que eu não via há muito tempo, alguns que nem conhecia. Inclusive o Felipe eu não via há três anos. 
Quando eu era criança e adolescente, todos os anos minha família ia ali a convite dos meus tios, que iam a convite dos donos da casa. Não havia tanta tecnologia para comunicação a distância, de forma que aprendemos a manter uma amizade bastante sólida sustentada pela semana que costumávamos passar juntos. Talvez tenha sido por isso que ao reencontrar o Felipe, parecia que nenhum dia tinha se passado, embora tivessem se passado três anos. 
Ele não tinha mudado nada. Continuava magrelo, pouco mais alto que eu, com aquele tom de pele invejável, dourado, naturalmente bronzeado. Eu mesmo, em três dias ali, estava vermelha como um pimentão, ardendo e coçando. Consequências do sol numa pela cor de palmito e sensível como um morango maduro. 
O Felipe tinha se mudado da casa dos pais, estava fazendo faculdade, tinha uma namorada, um emprego, mas continuava aquela figura peculiar. Era muito inteligente, nerd, muito engraçado, mesmo quando ele não queria ser. Eu sempre achei muito legal o fato de ele gostar tanto de conversar, coisa que eu não notava nos rapazes ao meu redor, como meus irmãos e alguns amigos. O fato de termos tantos gostos em comum também ajudava. Eu demorei para acostumar com a forma repentina com que ele mudava de assunto, o que parecia falta de interesse, mas com o tempo percebi que ele dialogava demais com ele mesmo, e com muita facilidade se perdia nos próprios pensamentos. Ele era um cara bem legal. 
Eu não costumava pensar muito nele no meu dia a dia, mas quando nos encontrávamos, passávamos todo o tempo juntos. Nos últimos três anos, com todas as mudanças que nós dois passamos, nos falamos muito pouco, somente trocando alguns e-mails. Eu sempre considerei isso o "efeito namorada". É assim: você é uma mulher que tem um amigo. Ele começa a namorar e de repente parece que a amizade com você é uma coisa imoral. Já passei por isso com alguns caras que eu considerava bastante e com quem tinha uma relação bem próxima, de pura amizade. Até aparecer A NAMORADA e fim. 
Mas eu me surpreendi com o reencontro com o Felipe. Nem estava esperando muita coisa. Aliás, já estava preparada para encontrar a namorada dele e nem podermos conversar muito. Mas a namorada dele não estava ali e nós simplesmente fomos os bons amigos de sempre, parceiros nos jogos em grupo, dupla pra limpar a cozinha após o jantar e começar nossas conversas infinitas sobre os mais variados assuntos que continuavam na mesa da copa até minha tia começar a apagar todas as luzes. 
Fiquei feliz de ver que nossa amizade continuava a mesma e bastante natural. 

Quando a estrada começou a aplainar, além do enjoo, eu lutava contra o pensamento deprimente de voltar pra minha rotina. Os dias no sítio pareciam ter acontecido em um universo paralelo. Não me preocupei com nada, não pensei em nenhum problema, melhor, não criei nenhum problema na minha cabeça, não tive nenhuma crise de ansiedade, ri pra caramba, tive conversas de menininhas no quarto com minhas primas, comi a comida maravilhosa da minha tia, tive paz. 
- Melhor? - A voz de Felipe me arrancou dos meus devaneios. 
- Hum? - Ele me olhava com os pequenos olhos cor de mel. Tudo nele era meio pequeno. O nariz, o rosto magro, as orelhas. Os cabelos castanhos finos formavam discretas ondas pela cabeça. O sorriso tinha sempre um toque ingênuo que chegava até os olhos. Aquele olhar distraído, mas que nunca fugia quando precisava encarar alguém. Eu sempre fiquei um pouco incomodada pela  forma com que ele me encarava bem nos olhos quando falava comigo, mas era só o jeito dele. Oposto do meu, que nunca consigo olhar nos olhos de alguém por muito tempo. 
- Você está meio verde. Vai vomitar?
Fiz uma careta entre o riso e o mal estar
- Não, já está melhorando. É só chegar no asfalto. 

Nos bancos da frente, meus tios estavam concentrados em algum assunto sério, enquanto músicas dos anos 70 tocavam no rádio. Finalmente, saímos da estrada de terra. 
- Então, você trabalha amanhã? - Perguntou Felipe
- Sim. Ás 8 da manhã tenho que estar no escritório. - Suspirei só de pensar. 
- É tão ruim assim?
- Ah... bem... - senti uma culpa imediata. Na verdade, meu trabalho era bastante bom - Não... na verdade é um bom lugar pra trabalhar, tenho bons amigos lá, meu chefe é ótimo. É só que sabe... a rotina de todo dia... e não é bem um lugar onde um tenho muita perspectiva de crescer ou fazer coisas diferentes. Sei lá... Acho que preciso de férias. Sabe, final de ano, já estou entregando pra Deus. 
- Hum... entendo. Eu volto a trabalhar logo depois do Ano Novo, dia 5. 
- Ah, eu entro de férias depois do Ano Novo, dia 2. 
- Ah! Então foca nisso e segue! - ele me encorajou com um sorriso - Já está quase ai, Clarissa. Natal, Ano Novo, férias. Nem um mês. 
Não respondi, mas concordei. Eu não sabia porque estava tão desanimada de repente. 
- Você disse que trata a ansiedade?
Fui pega de surpresa. Senti minha sobrancelhas enrugarem inquisidoras. A gente nunca tinha falado sobre isso. 
- A madrinha perguntou se você continuava o tratamento e você disse que tava fazendo terapia....- ele deixou a frase morrer, constrangido e virou o rosto pra janela. 
- Ah, sim. Não, tudo bem. Não tem problema. É, eu comecei a terapia tem uns meses, tem me ajudado bastante. 
- E como é? O que você sente? 
- Nossa, mil coisas. Esse assunto rende... Ela aparece de várias formas, sabe. Geralmente é sempre uma espera constante de acontecimentos ruins e reações físicas que bom... praticamente parece que você ta sempre doente. Dor no corpo, enjoo, tremedeira, suo...
- Eu acho que tenho isso - Falou ele de repente me interrompendo. 
Eu fiquei séria e olhei pra ele fixamente. Felipe olhava para as mãos, umedecendo os lábios com a língua e depois mordendo o canto do lábio inferior. 
Então, eu percebi que ele tinha algo que o atormentava há muito tempo e que havia uma necessidade enorme de por para fora. 
- Outro dia, eu saí meio sem rumo pelo sítio, peguei umas pedras e comecei a atirar com raiva no chão. Não aguento mais essa merda. Parece que vou ficar louco. 
Se eu não estivesse tão surpreendida, teria dado risada, afinal, aquela era minha vida. Mas nunca, nem por um segundo, imaginei que o Felipe, o cara bem humorado, distraído, sempre tão calmo sofresse com algo como aquilo. Embora, muitas pessoas também se surpreendiam quando eu dizia que na realidade, era surtada. 

Continua.

Este texto faz parte do desafio #julhoquevou lançado pela escritora e roteirista Maria Helena Alvim (@mhalvim)


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