Quer ouvir uma coisa maluca?
Como ele não riu, pelo contrário, estava bem sério olhando para mim, continuei:
- Ou que eu pudesse passar mal... Mas não é pensar nisso só uma vez e ok. Não. É ficar pensando nisso de forma obsessiva, então começa a se tornar realidade, é como se eu tivesse certeza que algumas dessas coisas fossem acontecer. E então vem o medo... e o corpo começa a reagir com o suor, o tremor, as dores, o intestino solta ou prende, o estômago dói... enfim, tantas coisas... Mas essa sensação te acompanha o tempo inteiro. Às vezes, eu estou tranquila no trabalho e, de repente, penso que alguma coisa aconteceu na minha casa com alguém da minha família e tenho uma crise de ansiedade e fico com uma necessidade enorme de ligar em casa e ter certeza que está tudo bem. E enquanto eu não checo isso, não me acalmo... Muitas vezes, nem tem nenhum pensamento associado, simplesmente o corpo entra em estado de alerta e a mente acompanha, esperando o ruim acontecer...
Felipe deu um suspiro com um meio sorriso.
- Nossa, sim, é exatamente assim que eu me sinto.
- Tem vezes que isso acontece de uma maneira muito estranha. Por exemplo, quando eu entro no ônibus para fazer uma viagem, fico pensando que minha mala pode ter ficado esquecida do lado de fora, principalmente se eu não vi o motorista colocando no bagageiro... ou então, o pior - agora foi minha vez de rir - se eu vejo ele colocando e fico repetindo isso pra mim mesma, mas ao mesmo tempo penso que talvez, ele possa ter tirado minha mala do bagageiro para arrumar espaço ou sei lá, e minha mala ficou esquecida. A necessidade que eu sinto de pedir pra abrir e conferir se minha mala está ali... nossa...
Felipe olhava pra mim com seus olhos cor de caramelo bem arregalados. Agora sim uma reação normal de alguém que fica certo que não tem problema nenhum e que está conversando com uma pessoa realmente pirada.
Eu começava a me arrepender de contar tudo aquilo pra ele, mas ao mesmo tempo, se pensar que eu precisava ser internada num hospício fizesse com que ele se sentisse mais confortado com ele mesmo, tudo bem, eu ficava feliz.
- Quer ouvir uma coisa mais maluca ainda? - como ele não respondeu, eu continuei - uma vez eu comprei uma galocha numa loja, sabe aquelas botas de borracha para usar na chuva? - ele assentiu positivamente - E quando eu deitei para dormir, comecei a pensar que a bota estava muito larga, que eu precisava trocar e aquilo me angustiou num tanto... precisei levantar, experimentar a bota e ficar andando pelo quarto sem decidir se ela ficava larga ou não, se eu precisava trocar ou não, talvez um número menor ficaria muito apertado e eu não poderia usar a bota de jeito nenhum, havia sido um desperdício de dinheiro. Eu fiquei obcecada com aquilo ao ponto de quase não dormir...
A expressão do Felipe era inteira arregalada. Os olhos pareciam que iam saltar do rosto, a boca levemente aberta. Talvez eu tivesse ido longe demais. Ficamos em silêncio por um momento, enquanto eu começava a me sentir bastante envergonhada. Até que por fim, ele disse soltando uma lufada de ar:
- Comigo acontece EXATAMENTE a mesa coisa.
Eu não esperava por aquilo. Olhei para ele surpresa. Ele virou todo o corpo de lado, dobrando uma das pernas sobre o banco para ficar o mais de frente possível para mim:
- Olha, nas aulas de laboratório, quando eu tenho que lavar os tubos das experiências, eu simplesmente... eu meio que travo naquilo, porque sinto que não está limpo o suficiente, que tenho que lavar cada pedacinho. Eu tento disfarçar para as pessoas não perceberem, mas as vezes eles percebem e perguntam o que eu esto fazendo. Se eu realmente não consigo sentir que eu limpei direito é muito angustiante ter que deixar tudo ali e ir pra próxima aula. Eu fico nessa obsessão que preciso voltar e checar se eu lavei direito porque outros alunos vão usar e verão que está sujo e farão alguma reclamação.... Meu Deus, eu não sei se é o mesmo caso que o seu, eu nem sei se eu estou fazendo sentido, eu.... nossa - ele passou as mãos pelos cabelos respirando profundamente.
Eu não pude evitar de sorrir.
-Felipe, eu te entendo. Totalmente, acredite.
Por um momento eu pensei se deveria falar que aquilo era um nível tão alto de ansiedade que poderia desencadear o Transtorno Obsessivo Compulsivo, algo que eu mesma não tive por muito pouco... Mas achei melhor não deixa-lo mais pilhado com aquilo.
- Sabe, depois de um tempo passa... Eu nunca voltei pro laboratório por causa disso, mas tenho medo que um dia... - Ele engasgou nas próprias palavras - mas é tudo isso que você falou, essa sensação de que sempre algo ruim vai acontecer e muitas vezes, a sensação de que eu tenho alguma culpa... Seja porque de fato eu fiz algo errado, ou... ou... ou...
- Ou até mesmo que Deus vai te punir por alguma coisa ruim que você tenha feito porque é uma lição que Ele tem que te ensinar....
- Isso! - Eu não sabia dizer se ele estava mais aliviado, desesperado ou empolgado.
Nós dois tínhamos uma boa relação com Deus e a religião e sabíamos que aquilo de "castigo de Deus" não era verdade, mas era uma sensação constante de que precisávamos de algum tipo de punição, algo totalmente da nossa cabeça.
- Sabe, isso também é muito perfeccionismo, Felipe. Uma exigência muito grande consigo mesmo...
Ficamos em silêncio por mais um momento. Eu olhando os carros que passavam por nós na via de mão dupla, assim como o paredão de árvores que ladeavam a estrada. Na frente, meus tios agora estavam em silêncio, o som da música um pouco mais alto.
What you tried so not to show
Something in my soul just cried
I see it all in your blue eyes]
Cantava Lobo suavemente. Me perguntei se meus tios ouviram nossa conversa atrás. O céu estava totalmente azul, sem nenhuma nuvem e o sol parecia queimar mais que nunca. Eu não pude deixar de cantarolar junto com a música...
The way that I want you
The way that it should be
Baby, you'd love me to want you
The way that I want to
If you'd only let it be
- Desde quando você sente tudo isso? - Felipe interrompeu minha cantoria.
- Desde pequena, mas demorou muito pra eu entender que tinha um problema e que precisava de ajuda. Na verdade, eu achava um absurdo que as pessoas simplesmente pudessem estar tão calmas o tempo todo, que as pessoas não considerassem cada cenário ruim que pudesse acontecer. Quando eu manifestava meus pensamentos de alguma forma, sempre ouvia "ai calma, não vai acontecer nada". Como você sabe?! Tantas coisas ruins acontecem o tempo todo... - Felipe concordava comigo com a cabeça com um sorriso sarcástico no rosto. - Ou sempre ouvindo que eu era uma exagerada.... A verdade é que, como na maioria das vezes, se não todas as vezes, nada de grave acontecia, eu ficava envergonhada de mim mesma e até com raiva por sofrer tanto "à toa"... Mas eu só fui entender que isso era um tipo de transtorno ou distúrbio na vida adulta, com o aumento das responsabilidades, a ansiedade foi aumentando e atrapalhando a minha rotina.
- Foi por isso que você resolveu fazer terapia?
- Sim... eu fui bastante resistente sabe, não era possível que eu não pudesse controlar minha própria mente. - Felipe soltou uma risada que dizia "eu sei como é" - Mas chegou uma hora que não dava mais. Ou ia desenvolver uma Síndrome do Pânico ou uma Depressão. Fui me tratar no momento certo.
- Ajudou?
- Me salvou! Nossa, definitivamente.
- Não parece que você é uma pessoa... sabe, não da pra dizer que você tem... que você passa por isso...
- Por quê?
- Porque você é tão engraçada, inteligente, tão articulada com as pessoas e sinceramente, você parece tão calma o tempo todo, serena...
- Rá! Isso é porque você não está comigo no dia a dia, você só me vê nos momentos calmos. Mas na verdade, Felipe, a ansiedade não interfere nas nossas habilidades ou na nossa personalidade. Ela pode ser um obstáculo porque atrapalha nossa concentração, desordena os pensamentos e tem toda essa parte de alerta constante que nos deixa extenuados de canseira. Mas é como, sei lá... A gente só precisa aprender a fazer as coisas apesar da ansiedade, ou junto com a ansiedade.
Felipe fixou olhar para a paisagem além de mim, talvez pensando sobre o que eu estava falando. Após um momento de silêncio, perguntei:
- Você já falou sobre isso com alguém?
- Como? - Ele arregalou os olhos.
- Você já falou desses sentimentos e sintomas no corpo pra alguém?
- Nunca! - ele respondeu como se a ideia fosse simplesmente absurda.
- Nunca comentou com seus pais?
Ele negou com a cabeça.
- Nem com a.... Flávia?
- Que Flávia?
- Sua namorada...
- Fabiana...
- Isso, Fabiana.
- Nem pensar.
- Ué, por quê?
- Porque ela vai achar que eu sou maluco. Você namoraria uma pessoa como eu?
- Você namoraria uma pessoa como eu, Felipe?
- Ué e por que não?
- Porque eu sou surtada, pessimista, histérica, travada...
- Ah não exagere!
- Olha lá! A exagerada, você namoraria uma pessoa exagerada assim? Dramática...
- Clarissa, calma. Não tem nada a ver... você é... você é ótima!
- Você também, Felipe! Só precisa de ajuda pra um problema pontual. Isso não se sobrepõe a todas as coisas boas que você tem.
- Ah, não sei não. Não sei como ela ou meus pais iriam receber tudo isso.
- Olha, eu sei que não é fácil, mas meus pais foram muito compreensivos comigo. Principalmente quando eu parei de tentar esconder e comecei a falar como eu me sentia. Quando comecei a pedir ajuda pra eles quando começava uma crise de ansiedade com falta de ar, tremedeira, diarreia... Eles viram que era algo que estava além do meu controle, que não era loucura. E juntos, todos percebemos que tem tratamento.
Ele não respondeu nada.
- Você não é maluco, Felipe, e nem sozinho. Tem muita gente sofrendo com isso, até coisas piores. Mas é possível melhorar sabe.
Ele continuou em silêncio. Talvez eu devesse parar de falar, mas já que tínhamos chegado até aqui...
- Olha, você realmente deveria falar com alguém. Se abrir sobre isso. Pensar em buscar ajuda. Você pode até se surpreender, sabe? Falar com algum amigo sobre isso e ele dizer "hey! eu passo pela mesma coisa!".
- Como acabou de acontecer com a gente? - Ele abriu um sorriso, largo e espontâneo. Não consegui me segurar, sorri de volta.
- Sim, como acabou de acontecer com a gente.
Meu tio começou a diminuir a velocidade do carro. Estávamos entrando na rodoviária.
Continua
Este texto faz parte do desafio #julhoquevou lançado pela escritora e roteirista Maria Helena Alvim (@mhalvim)
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