Quarentena dia 103 - Recuerdos do dia 91

Confesso: não imaginava que chegaria a contar o dia 103 da quarentena. Bom, eu continuo trabalhando em casa, fazendo exercício em casa, terapia em casa e saindo apenas para o essencial. 
Mas hoje eu quero relatar algo que me aconteceu no dia 91 da quarentena, especificamente, 19 de junho, o dia em que, depois de meses, eu me vi num espaço público, no meio das pessoas, num ambiente aberto, com trânsito e me dei conta que eu simplesmente.... desaprendi a andar na rua. 
Me senti uma daquelas moças de sítio que a gente vê em novela das 18h da Rede Globo, que chega na cidade grande pela primeira vez. 

Mas não tão linda, claro.
Mas não tão linda, claro. 

Naquele dia, eu precisei ir ao centro da cidade para um trabalho, uma entrevista com um Senhor de 93 anos, na casa dele. A princípio, não estava muito preocupada, mas quando foi chegando a hora de ir, me deu uma apreensão por ter que pegar um Uber. Primeiro, porque Uber é um lugar em que entram e saem várias pessoas num mesmo dia e qual a chance de um delas ter deixado um coronavírus no banco para mim?!
Segundo, eu ainda tinha na cabeça a história da moça que quase foi violentada por um motorista de aplicativo aqui na minha cidade. O caso virou notícia. Mas até aí, tudo bem. Toda santa vez que eu entro num Uber, faço a previsão de vários cenários que envolvem violência e planejo várias rotas de fuga, ou seja, com esse tipo de medo já estou acostumada. Se você sofre de ansiedade, entende o que eu to falando, se não... talvez isso seja assunto pra outra hora. 
Enfim, meu medo mesmo era entrar num carro contaminado. 

Além disso, comecei a pensar se deveria levar sapatos extras para entrar na casa do Senhor... será que ele estaria atento a todas as medidas de higiene ou seria melhor eu me precaver? 
Outro problema, a máscara. O Senhor não tem uma audição muito boa e eu não poderia tirar a máscara, será que ele iria me ouvir? Será que ele estaria de máscara? Eu pretendia gravar a entrevista, mas se ele não estivesse de máscara, iria cair gotículas de saliva dele no meu celular e eu teria problemas para usá-lo depois....

Mamma mia! Qual é o protocolo pra vida agora?
 













Bom, com medo ou não, eu precisava ir. Coloquei minha máscara, álcool na bolsa e preparo mental. 

Entrei no Uber, abri as janelas e tentei não tocar em nada. Percebi que o motorista também tinha desinfetante líquido no carro. "Ok, ele está tomando cuidado. Está tudo bem, estamos seguros". Fiquei calma. E naturalmente, não sofri nenhum tipo de violência. 😬

Chegamos no destino. No centro do Centro, no coração do Centro da Cidade. O motorista parou bem na faixa de pedestres e perguntou se eu podia descer ali. Ok, claro sem problemas. Desci e fui pra calçada do outro lado da rua de onde ficava a casa.  

Foi quando eu buguei. 

Eu paralisei sem saber o que fazer. Havia tantos carros na rua, tanta gente na rua, aquele céu azul, aquele sol da tarde... Eu com celular na mão, precisando ligar para o Senhor vir abrir o portão, mas de repente, vi minha mente dominada por um único pensamento "eu vou ser assaltada". 
A sensação foi tão forte que eu quis sair correndo. Naquele milésimo de segundo em que tentava recuperar o raciocínio e fazer a ligação, senti algo mexer na minha bolsa. 

EU DEI UM PULO. 

EU DEI UM PULO NO MEIO DA CALÇADA. ASSUSTADA, ENGOLI O GRITO. 

Olhei pros lados e não havia NINGUÉM perto de mim, NINGUÉM. Mas eu tinha CERTEZA que alguém tinha mexido na minha bolsa. Fui checar se ela estava aberta e COM CERTEZA estaria. Mas não. Não estava. Eu estava totalmente sozinha naquele pedaço da calçada. 

Meu coração estava acelerado...


Olhei pra casa: "Vamos, é só atravessar a rua e pronto". Mas, novamente de repente, EU NÃO SABIA ATRAVESSAR A RUA. Havia faixa de pedestre, mas não havia semáforo.  Fiquei parada uns segundos até que percebi o motorista do carro parado na faixa, olhando pra mim de um jeito estranho. O olhar dele era uma mistura de "moça, vai atravessar ou não? to aqui, irritado já, esperando", com "moça, tá tudo bem?". 

Foquei e atravessei. 
Meu cérebro naquele momento

Na frente da casa do Senhor, liguei para que ele viesse abrir e, enquanto esperava, a sensação de que seria assaltada e de que cada pessoa que passava por mim naquela calçada estava me encarando, era muito forte. Queria gritar pra que o Senhor abrisse a porta logo. Eu estava com o cérebro travado e a verdade é que aquilo estava me assustando mesmo. Por fora, eu fingi plenitude, por dentro...



Enquanto eu esperava o Senhor, um moço de muletas, com a máscara no queixo, veio andando na minha direção, olhando fixamente para mim. Meu coração, antes disparado, começou a parar, minha garganta secou e eu agarrei no portão com os dentes cerrados. Eu tinha certeza que ele ia me assaltar. Tinha uma parte do meu cérebro que percebeu a confusão e tentava me alertar:
"Você não está sozinha, tem um monte de gente na rua e o Senhor já está na porta, vindo abrir o portão. Esse cara não vai te fazer mal".

Até que ele parou bem na minha frente e falou "Moça"

 

Agarrada no portão, o Senhor vindo lentamente, eu só pensava duas coisas "Ele vai me assaltar. Pior, vai me assaltar com essa máscara no queixo e vai me passar corona. Moço, por favor, você quer meu celular? Ok, mas se for falar comigo, por favor, coloque essa máscara direito". 

O cara pediu esmola. ele só queria uma esmola. Eu disse que não tinha. 
"Pronto", chorei por dentro, "agora ele vai bater em mim com a muleta porque eu to falando que não tenho dinheiro. E essa MALDITA MÁSCARA CONTINUA NO QUEIXO". 

O cara falou obrigado e seguiu o caminho dele, enquanto o Senhor finalmente abriu o portão ao qual eu atravessei num pulo. 
Eu tremia um pouco, sentia a garganta seca e o coração descompassado. Porém, plenitude e simpatia, porque claro, eu tenho que parecer uma pessoa normal. 

"Você vai ficar de máscara?" - perguntou o Senhor.
"Ah, sim, melhor a gente tomar cuidado, né". - respondi sorrindo, embora, claro, ele não pudesse ver meu sorriso. 
"Mas quando chegam aqui, os bichinhos morrem todos. Não se preocupe". - afirmou o Senhor tranquilamente.

Claro, eu não ia tirar a máscara. 

Finalmente me acalmei, sentamos em uma mesa com uma distância curta entre nós, o que me incomodou por causa do protocolo de dois metros, blablabla, mas o Senhor não iria me ouvir se eu ficasse muito afastada. Ok. Aceitei que não teria outro jeito. Como o Senhor estava sem máscara, tentei colocar meu celular de um jeito estratégico, longe das gotículas. 

Mas o problema não acabou ai. 

O Senhor não conseguia entender quase nada do que eu falava. Eu respirei bem fundo e busquei uma manobra mental: "Bem", pensei "estou na casa de um senhor de 93 anos que em três meses não apresentou nenhum sintoma da Covid-19 e continua perfeitamente bem. Talvez, os bichinhos morram mesmo quando chegam aqui". Tirei a máscara. 
E foi ai que me dei conta. O certo seria guardar a máscara num saquinho e na hora de ir embora, colocar OUTRA máscara limpa. Mas eu não tinha OUTRA máscara limpa. Eu não podia colocar a minha máscara em LUGAR nenhum, porque precisaria dela para ir embora. Meu cérebro começou a bugar de novo, enquanto meu entrevistado me esperava pacientemente continuar com as perguntas. 


De novo, respirar e manobra mental: "meu pai virá me buscar. No nosso carro, estarei mais segura. Não tem problema estar sem máscara".

Entreguei a vida pra Deus, coloquei a máscara em cima da bolsa e prossegui com meu trabalho. 

Hora de ir embora. Liguei pro meu pai. Ele havia esquecido o celular em casa, ninguém sabia onde ele estava, de forma que eu precisaria de outro Uber.

E MINHA MÁSCARA ESTAVA SUJA EM CIMA DA MINHA BOLSA E EU NÃO TINHA OUTRA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
E não tinha a MENOR condição de eu entrar em um Uber sem máscara.



O Senhor já tinha aberto a porta e estava me esperando no melhor estilo "não vai embora, não, minha filha?". 
Sabe o que eu senti? Resignação. De jeito nenhum iria entrar num Uber sem máscara. Olhei pra minha máscara em cima da bolsa e pensei "Ah, os bichinhos morrem quando chegam aqui, mesmo", e recoloquei minha máscara. 

Depois de tudo isso, fiquei esperando meu Uber na frente da casa do Senhor. As ruas já estavam bem mais vazias e eu não senti medo nenhum, o que é meio contraditório, porque ai sim eu deveria ter sentido medo. Quero dizer, com a rua vazia, a chance de ser assaltada era muito maior. Porém, paz até chegar em casa. Se era pra pegar carona, já era, que fosse. 

Cheguei em casa, desinfetei tudo que eu podia e fui tomar banho.

Relatei meu dia pra minha mãe e mandei áudio pras minhas amigas e olha... eu ri demais. Eu ria tanto lembrando de tudo.... 

Eu sei, você que está lendo isso já concluiu que eu sou louca. Eu sou mesmo, um pouco. Eu gargalhei de tudo, mas fiquei preocupada. 
Falei sobre isso com minha terapeuta, ela me tranquilizou. Disse que alguns pacientes estão relatando reações bem incomuns, de pânico inclusive, ao ir para lugares públicos depois de tanto tempo em casa. Ela disse que algumas pessoas vão ter sérios problemas com isso quando a pandemia acabar, mas que o que aconteceu comigo estava dentro de um nível de normalidade e que era bom que eu risse quando lembrasse. 

Então, meu amigo, se você teve pequenos surtos ao sair na rua... não se preocupe. Se você ainda não passou por esta experiência.... se prepare e o mais importante: SEMPRE tenha uma máscara limpa reserva na sua bolsa. 

Este texto faz parte do desafio #julhoquevou lançado pela escritora e roteirista Maria Helena Alvim (@mhalvim)

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